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quarta-feira, 24 de junho de 2009

Ruta "Pedals de FOC" - Dia 4

24 Junho 2009
Son – Viella


Estranhamente acordei à hora do costume, mas o corpo estava dormente e a cabeça não se encontrava nas melhores condições, pedindo árduo trabalho para conseguir discernir os meus pensamentos durante aqueles primeiros minutos.
A boca encortiçada pedia água com urgência.

A noite de ontem tinha deixado marcas.
Em Yon e Hiker a tola latejava de igual maneira. Gosom ainda dormia na sua estreita tarimba.

Meia hora depois e de banho tomado começamos a recuperar e com a ingestão de um calórico pequeno-almoço – que inclui as bem ditas fatias enormes de pão tostado, barradas com alho, azeite e tomate para depois serem cobertas de fatias de enchidos e queijo – a coisa foi melhorando significativamente. Comi que nem um abade. O corpo bem o pedia e eu dava-lhe!

Obstante o potente desayuno, encontrei alguns problemas para manter o equilíbrio durante as primeiras pedaladas através do Cami del Calvari.
Mas da mesma forma que tinha acontecido ainda há pouco, o corpo lá foi recordando como andar de bike e em menos de nada estava como se nada tivesse passado, fluído e ágil como sempre.
Felizmente, porque o que se ia mostrando era realmente de grande qualidade. Um sendero que se perdia por dentro da zona baixa do Bosque Negro e que pedia muitíssimo da técnica, com curvas a 180º com uma inclinação razoável e bastantes pedras a impedir uma passagem mais bruta. Algo de muito precisoso. O melhor single-track de todo o trajecto.

No final deste Cami del Calvari entrámos numa outra zona. Num bosque muito bonito, de nome Bosque del Gerdar e que por ser Reserva Integral não é permitido circular de bicicleta. O pequeno percurso é feito a pé e a coima por desrespeito pode chegar aos 600€ – e os guardas estavam mesmo lá que eu vi.
Vai da consciência de cada um, mas independente disso, torna-se uma petição fácil de cumprir já que o trilho apresenta um elevado grau de dificuldade e não será exequível a qualquer um.
A paisagem envolvente é digna de ser plenamente apreciada, vale bem o curtinho passeio pedestre!


Á saída de Son…

No inicio da jornada pelo Cami del Calvari…

No Cami del Calvari! Soberbo, fantástico, precioso... Descida alucinante…

Ainda no Cami del Calvari, todo ele ciclável haja a perícia necessária…

Na ponte de Barranco de Cabanes…

Barranco de Cabanes…

Bosques de Piño Nero – Pinheiro Negro

NÃO CICLAVEL. É reserva Integral! Há que respeitar…

Plaza Major de Sorpe…

Quando o single-track que nos carregava desde Sorpe termina, entra-se numa estrada que sobe gentilmente pela encosta da montanha. O asfalto permite-me uma cadência que até ali ainda não tinha conseguido atingir, permitindo deste modo um avançar suave e sem grandes martírios ao longo de um pequeno rio que descia vale abaixo, revolto e gelado…
Essa linha cinza e esguia levar-me ia a passar por Isil e daí até Alós d’Isil, lugar onde tinha programado uma paragem mais longa para almoço. Os Bascos esses, já deviam estar quase a chegar a Alós d’ Isil, onde eu chegaria 30 minutos depois.
A estrada mantinha-se à fresca, resguardada sob a copa das frondosas arvores que se penduravam nela desde a encosta. Foi uma subida de 6kms que fiz sem pressa, degustando cada novo sabor do rebuçado que trazia na boca desde que chegara a Viella, alguns dias antes…


Ainda estive para tomar uma banhoca, mas estava fria…

Alós d’Isil…

Almocei aqui, em Alós d’Isil, o pic-nic que trouxera da casa Masover.
Acabei por dar uma voltinha pelo largo, fazendo com que um senhor que descansava na varanda de sua casa se tenha interessado de minha figura. Falou-me em Aragonês…
Foi como se tivesse falado em russo!
No castelhano mais correcto que consegui encontrar expliquei-lhe cordialmente que não tinha entendido nada do que me havia dito, que era português e que se queria falar comigo só em castelhano mesmo…

Riu-se e depois tentou de novo, mas num castelhano ainda pior que o meu – se isso é possível.
Perguntava-me se estava fazendo a “Ruta” – A Pedals de Foc, entenda-se – e depois de alguma conversa acaba por me aconselhar a não ceder à vontade de descer directo para Viella e seguir para Bagergue, que valeria bem o desvio.
Ora, já contava mesmo em ir por Bagergue! – Com mais esta dica, não falharia de certeza!

Acabei por saber que já tinha feito várias vezes aquela volta, umas de bicicleta, outras a pé (!). Nunca por lazer, mas sim por necessidade de se deslocar de um sitio para outro por qualquer razão. Também fiquei a saber que o seu mau castelhano era devido a quase nunca usar a língua, apenas Catalão e o dialecto da sua terra, o Aragonês.

Para Bordes d’ Isil foram só mais 8km de subida leve e em óptimo piso. Um estradão largo de chão compacto e poeirento ascendia devagar pelo vale. Sempre ladeando o rio o que fazia com que a temperatura andasse muito perto da ideal, minimizando a tarefa de pedalar com o sol a pino por cima da cabeça.


Tranquila e majestosa subida para Bordes d’ Isil…

Com as vistas sendo progressivamente “maiores”…

Um descanso…

Passeando por Bordes d’Isil…

Foto tirada a pedido a um casal de namorados…

Seguindo viagem acabo entrando rapidamente no Vall d’ Aneu, majestoso e único.
O objectivo era agora o antigo Santuário de Montgarri, um dos ex-líbris da região e que por essa razão atrai muitos visitantes. Está situado já dentro da espaço da reserva natural de L’Alt Aneu e é uma construção Gótica que data do século XiV e que mais tarde foi recuperado pelos Amics de Montgarri, que o transformaram em refúgio de montanha!

As pistas sucediam-se rápidas, tivesse eu ainda a força necessária…
Os estradões de excelente piso ajudaram a diminuir a dureza dos quilómetros seguintes, com os trilhos a desenrolarem-se num suave mas demolidor “rompe-pernas” que progressivamente me ia consumindo as forças, chupando toda a energia que os meus secos músculos ainda tinham capacidade de debitar. Começava realmente a acusar o cansaço das jornadas anteriores, com o disparate da última noite em Son – aquela refinada bebedeira – a pesar por cima dos 5500m de subidas que já carregava na mochila.

Custou-me, mas havia de chegar a Montgarri. Afinal estava quase lá…
Mas este doce ondular ia-me dando cabo das pernas mais depressa do que os quilómetros passavam sob as rodas, e quando avistem o Santuário ia realmente bastante cansado, estafado pode-se dizer.


Cores fascinantes…

A caminho do Santuário de Montgarri…

Santuário de Montgarri e Refúgio Amics de Montgarri…

“A montanha é mais bonita com flores
que com papéis. Deixa-a
como a haveis encontradao.
Assim amanha os pássaros não terão
que se perguntar ?Quem passou por aqui?”

No Santuário estavam os companheiros Bascos ainda entretidos com um valente prato de massa. Também lhes custou esta última zona – acabaram a confessar!
Peço comida e bebida para repor os níveis no limiar do aceitável e entrego-me sem cerimónias a esta tarefa assim que a comida toca a mesa e só me dou por satisfeito quando o garfo arrepia no fundo do prato. Um gelado de morango e por ultimo um café que peço em simultâneo com o necessário e último controlo da travessia, o C8!

Enquanto isso, os meus companheiros ultimam os seus preparativos e seguem viagem rumo ao destino final, Viella.
Em conversa com Hiker – que conhecia bem os próximos quilómetros pois treina aqui ski de fundo – fiquei a saber que ainda me faltavam uns 500m de desnível positivo a vencer que poderiam ser divididos em três zonas: Uma dura, outra menos má e uma final, muito ruim (!).

Abalam uma vez feitas as despedidas da praxe:

“O’n di’oxl” – Isto em Basco soa melhor, mas eu mal sei pronunciá-lo, muito menos escrevê-lo. Quer dizer qualquer coisa como: “Adeus e passa bem” ou “Boa continuação”.
“Adeus pessoal, boa viagem!” – Despede-se o tuga à Portuguesa!

Haveria ainda de rever Yon já na conversa com Pep à minha chegada à PdF…


As despedidas dos companheiros Bascos…

Deixando Montgarri para trás…

Novamente em marcha, o conjunto seguia agora novamente com mais genica. O motor estava de novo atestado, embora a elegância tosca com que ia enfrentando as subidas não desse provas disso. Mais uns minutos até entrar de novo num ritmo calmo e siga que para a frente é que há caminho.
Até ao Pla de Beret aconteceu como Hiker tinha dito. Umas subidas difíceis intervaladas como algumas zonas rolantes e subidas menos duras e mais progressivas, sempre por uma pista com relativo bom piso.

Ao atingir o Pla de Beret tive hipótese de constatar o estado do tempo no Vall d’Aran. Estava medonho!
Parecia que finalmente os deuses tinham quebrado o pacto e ameaçavam agora soltar sobre as nossas cabeças demoníaca fera para nos impedir a entrada em tal recôndito vale. Na continuação do caminho acabei por ir ao encontro do menos provável dos bichos. Um burro parado no meio da pista!
O bicho ao me perceber abrandar avança na minha direcção, curioso e afável, e estica a cabeçorra pedindo festas! Esfreguei-lhe o focinho, ele agradeceu e seguiu o seu caminho, descontraído e vagaroso.


A chegar ao Planalto de Beret surge este ilustre anónimo…



A cruzar a Estância de Ski Baqueira/Beret…

Uma vez cruzado a Estância de ski de Baqueira/Beret só me restava alguns quilómetros antes de poder saborear por inteiro o desfecho desta aventura. O Livro de Ruta apontava o Cruce de Orri como o ponto onde encadearia com o trilho que me havia de acompanhar até ao derradeiro final em Viella, o GR211.
Mas aquela última recta no Pla de Baqueira foi terrível de vencer devido ao fortíssimo vento que varria todo o planalto visivelmente enfurecido. Foi devido ao facto do Cruce de Orri – e o inicio da longa descida – estar ali à vista que resisti à tentação de baixar o ritmo imposto pela relação de transmissão que trazia desde que tinha pisado asfalto, 1.5km lá atrás. A Talega foi difícil de conquistar nestas paragens e agora haveria de aproveitar o seu superior embalo para me arrastar até ao início da derradeira descida.
Uma descida que contava 13km seguidos através do GR211, ora em pistas de gravilha ora através de single-tracks e caminhos rurais.

Qualquer coisa de alucinante! – Haveria de constatar…


Inicio do GR211, algo de sublime…

Depois alargava e corria solto e desenfreado montanha abaixo…

Por muitos e muitos quilómetros…

Depois de uma curva embico a frente da bike para um caminho de pé-posto que me levaria à tão falada povoação de Bagergue. Estava sinalizado no mapa e no Livro de Ruta e faz parte do percurso original da travessia que vinha a cumprir.
Algo menos fácil que seguir pelo estradão mas muito mais prazenteiro, sem dúvida alguma!
Desde Bagergue o percurso desenrolou-se por dentro de povoações ligadas entre si por caminhos rurais antiquíssimos e maravilhosos, single-tracks de perder a cabeça, sempre bem embrenhados na frondosa vegetação do vale…


No inicio do single-track que levava a Bagergue…

Passando por Unha…

Trilho duro e pedregoso…

Caminhos antiquíssimos e espectaculares…

Subida a Garós, das ultimas de toda a jornada…

Depois de Casarilh surge um single-track que leva até muito perto da povoação de Betren.
Esse sendero, depois de uma parte inicial pouco aconselhada a quem sofra de vertigens, proporcionou momentos muito divertidos, com umas descidas algo inclinadas e que não davam grande margem de manobra a um deslize…


“Foi você que pediu uma descida?!” – Reparem na altura do trilho VS cabos eléctricos…

Um single-track algo perigoso, à beira de um abismo com mais de 20 metros…

Mas do melhor. As vistas de onde vínhamos. – Lembram-se dos cabos??

Até à povoação de Breten, sempre tipo “fio dental”…

Breten fica colado a Viella, literalmente. Não há divisão entre uma povoação e outra pelo que em menos de nada estava cruzando a ponte de madeira sobre o rio Garona.
Mas agora sim, de bike e como feliz Pedalante do Fogo!

Estava a 50 metros da loja da Pedals de FOC e quando lá cheguei estava já Pep à minha espera!
De sorriso aberto estende-me uma Coca-Cola fresquinha e as congratulações do costume. Mas que sabem estupidamente bem ouvir…

Durante um bocadinho falámos sobre como tinha sido, se tinha gostado, como tinha passado esta ou aquela zona – as questões de sempre – até que a bebida se acabou e passámos então a tratar de carimbar o ultimo Controlo – o da chegada – e arranjar um Jersey – o de Finisher ehehehe – com que pudesse no futuro adornar o orgulhoso esqueleto…


Novamente à porta da PdF, feliz da vida! Foto sacada por Pep…

Apesar de terminada a passeata ainda tinha algo mais para andar, pois tinha o meu carro estacionado no parque do Hotel Pirene e esse ficava na encosta norte de Viella. Comigo estando no centro, não me restava outra alternativa senão seguir pedalando o que faltava, ou seja subir!

No hotel ainda tive direito a quarto para poder tomar banho e trocar de roupa, um brinde que o hotel dá aos que chegam das Pedals e que lá cumpriram a Noite0.
Cumprida esta tarefa ficou hora de procurar alojamento para a noite. Ainda pensei na hipótese de voltar a pernoitar aqui mas os preços dissuadiram-me rapidamente. Optei por isso por rumar mais a norte para ir encontrar no Camping Verneda o local ideal para passar uma derradeira noite antes de rumar a Lisboa, a mil duzentos e muitos quilómetros de distância.


Tendo começado a pedalar às 08h40, terminei pelas 17h15 com 2h40 de paragens pelo meio. Subi um total de 1480 metros de subidas e 1900 metros de descidas num total de 64.5km.

Cumpri na íntegra o percurso original que me tinha proposto e fi-lo sem ter um único furo ou queda, sendo a relatada troca de pastilhas de travão o único apontamento sobre mecânica que existiu durante todo o trajecto.

Local de pernoita: Camping Verneda
http://www.campingverneda.com/

[FIM]

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O Track GPS pode ser conseguido no arquivo do Track4you aqui do ForumBTT, ou na pasta "Tracks GPS" aqui do meu blog!

Ficam aqui mais uns links para a galeria completa de fotos...
Album I - http://picasaweb.google.pt/fjbnunes/PedalsDeFOCAlbumI#
Album II (Continuação) - http://picasaweb.google.pt/fjbnunes/PedalsDeFOCAlbumII#

terça-feira, 23 de junho de 2009

Ruta "Pedals de FOC" - Dia 3

23 Junho 2009
Espui – Son


De desayuno engolido apresso-me a sair para a rua. Ir buscar a bike ao parque de “bicis” – perceber que os do tandem já tinham partido novamente – carregar pilhas novas no Orégão e na máquina dos retratos, enfiar o pic-nic – almoço – dentro do camelbak, encher este de água e fazer-me à estrada.
Pela frente, 1km depois de ter começado a pedalar, tinha uma subida que se prolongaria por 12kms ininterruptos, com uma inclinação média a roçar os 10%, de bom piso e que me transportaria até ao Coll del Triador e ao alto dos seus 2138 metros de altitude.

Literalmente, passei as mais de 3 horas que se seguiram cavalgando o dorso da serpente… Uma serpente enorme e venenosa, deveras venenosa! Torcia-se montanha acima, levando-nos com ela numa fantástica viagem de sangue, suor e lágrimas.

Junto comigo em Montseny estavam hospedados, além do casal de Barcelona que já seguia na dianteira, mais 3 companheiros de origem Basca, super “boa-onda” e muito divertidos. Falámos apenas hoje de manha e sabia que teria a sua companhia nos trilhos, ainda que apenas durante breves momentos, pois eles haveriam de passar por mim e deixar-me pregado no chão.

Arranquei por isso entusiasmado, confiante e cheio de “ganas” de me ver pisando El Triador!
A encosta a vencer tinha um desnível de 1050 metros verticais e embora a inclinação fosse quase constante, de vez em quando lá vinha umas paredes, sempre em curvas apertadíssimas com formas de gancho ou de ferradura. Houve 3 dessas rampas que me obrigaram a descer dos pedais, autoritárias.


A povoação de Espui…

A cabeceira do Vall Fosca começava a perceber-se…

O primeiro “gancho” a doer a sério! Mais paredes destas haveriam de surgir…

A subida continuava…

Sempre fiáveis, ambos…

Espui e a serpente…

Ao pé daquelas pedras, nova secção a matar…

A 3ª e ultima parede em forma de ferradura…

As vistas que o horizonte abrangia…

O corpo da serpente… venenosa! Espui ainda visível no vale lá bem em baixo…

José já se encontra visível na imagem. Onde está o Wally?

No Coll del Triador, a 2138m de altitude.

Depois de 3h02m pisava finalmente o tão aguardado Coll. Lugar fantástico de onde se avista um mundo maravilhoso. Reconhecem-se os Pirineus franceses, os maciços orientais dos Pirineus espanhois, Andorra… Um Quebrantahuessos sobrevoa um pico pedregoso vizinho…
Só o vento interrompe aquele silêncio repleto de harmonia…

O vento e um ronco na pança!
Estava com fome. Já tinha comido no caminho, durante uma das paragens que fiz durante a subida, mas iria faze-lo agora ali mais descansadamente, com outras vistas para apreciar. Fazia o jeito e esperava pela restante malta que já sabia estarem todos a caminho. Já os tinha visto há uns quilómetros atrás, todos eles cavalgando o amarelado dorso da serpente, devagarinho e pachorrentamente…
Numa das vezes em que me debrucei sobre as vistas que iam ficando para trás reconheço José, que vinha forte e a ganhar espaço ao que nos separava, mais de uma hora de caminho.
Fiquei feliz por perceber que estavam de novo todos lá. Face às incógnitas do dia de ontem, não sabia se eles estariam aptos a prosseguir logo pela manha ou não. Assim conseguiram. O grupo do José chegou um pouco depois das 23h e apesar de não conseguirem resolver o problema do desviador da bike da Kate, passaram-no à mão para a avozinha e foi assim que ela trepou ao Coll del Triador.


Assim como Ken e Alex, os últimos do grupo a atingirem tão almejado…

Uma última foto antes das despedidas…

As despedidas tiveram que acontecer, lamentavelmente, e depois de abraços, beijinhos e votos de boa continuação, foi hora de seguir viagem. É que ao contrário dos meus amigos que tinham apenas mais 10kms para fazer até ao seu local de pernoita para hoje, eu teria mais 45, mais coisa menos coisa. E alguns deles duros, quer a subir, quer a descer.

Sigo direito ao Coll de La Portella, ponto mais alto da travessia, com a passagem dos seus 2268 metros através de estradões de bom piso, necessitando apenas de me preocupar para não atingir uma das muitas minas, provenientes do gado pastando descontraído, que salpicavam os caminhos.
As vistas continuavam dominadoras e magníficas.
A certa altura a pista – que vinha há uns curtos quilómetros à cota pela encosta da montanha, contornando o pico Montsent de Pallars e os seus 2883m – começa a descer suavemente sem nunca perder demasiada altura, mas torna-se rapidíssima com o acumular de desnível aliado ao piso de gravilha pequena. Acabou por ser uma surpresa em cada curva, pois nesta altura havia bons pastos, e além de muitas vacas, haviam também muitos cavalos. Alguns, exemplares perfeitos de porte elegante e atlético. Pastavam soltos e livres de amarras, donos das encostas das montanhas e dos caminhos.

Corvos levantavam do caminho à minha passagem enquanto águias sobrevoavam bem do alto, apreciando todo aquele panorama irrepreensível…


A caminho do Coll de La Portella, tecto da PdF com os seus 2268m de altitude…

Cavalos…

E uma intensa descida em gravilha, rapidíssima…

E ainda mais outros…

Esta descida termina numa zona em que um ribeiro alimentado pelo degelo da neve que ainda resiste um pouco mais acima nas alturas marca a transição para a extenuante subida até ao Coll de La Portella, onde iria largar os trilhos da “Travessia dos Pirineus” que tinha vindo a seguir desde Espui. Haveria de seguir então para a esquerda na direcção do Coll de La Creu de L’Eixol, que está fixado a uma altitude de 2232m, e que acaba por surgir depois de um período ondulante alternando pequenas subidas com pequenas descidas, sempre em estradão de gravilha, sempre á cota.

Depois do Refugio de Quatre Pins e daí até ao início da descida pelo Vall d’ Espot foram mais uns minutos. Alguns, pois a subida até ao Coll de nome complicado que permitia essa passagem foi durinha, embora de uma beleza estonteante.


O Pico Montsent de Pallars e a bela e rápida pista descendente que vinham seguindo…

No Coll de La Portella, situado a 2268m

A caminho do Coll de La Creu de L’Eixol, localizado a 2232m

Auto-retrato no Coll de La Creu de L’Eixol…

A descida para a povoação de Espot foi brutal. Muitos e muitos quilómetros de pistas e caminhos de terra para depois terminar em asfalto, já pertinho do pueblo. A pista de ski nórdico de Forcall foi tão potente que me derreteu o que restava das pastilhas do travão traseiro. Com este completamente inutilizado, passei a abusar do travão da frente que chegou á pacata vila de Espot rosado que nem o rabinho de um babuíno!
Foi demais…
Foram só 13kms de descida non-stop!

Em Espot voltei a encontrar os Bascos. Tomavam uma cervejinha quando cheguei á esplanada onde estavam sentados. Coincidência? Não! O local do C6 era mesmo ali atrás, no hotel Roya. Mais dois dedos de conversa e eles arrancam pois já ali estavam há 45 minutos. Delicio-me com um prato de “tapas” e uma coca-cola, aproveitando para descansar um pouco, pois dali para a frente seria novamente a subir.

“Ainda bem, pois já não aguento muitas mais descidas destas sem travão traseiro” – Pensava enquanto olhava o Livro de Ruta.

Já não havia comida no prato e no copo já só restava gelo, mas eu ainda não me tinha levantado. Já tinha inclusive fumado o cigarrinho do costume. Mas não me conseguia levantar, não me apetecia mexer. Mas tinha que ser, ninguém o iria fazer por mim e descansar mais não iria trazer benefícios.

Tive que me por ao alto e mandar o meu cérebro ordenar aos músculos fazerem o favor de me respeitar. – Afinal quem é que manda aqui?!


Iniciando a descida pelo Vall d’ Espot…

Descendo pela pista de ski nórdico Forcall da Estância de ski de Espot…

Povoação de Espot…

Depois de Espot restava-me alguns quilómetros a cumprir numa única subida até Son, local onde iria dormir, com a companhia dos companheiros provenientes do País Basco, na casa Masover.
A subida de asfalto foi meiga, mas não menos impressionante! Uma linha cinzenta muito brilhante cruzava impiedosa através dos montes acima, contornando estes e perdendo-se na densa vegetação atrás de uma curva.

As vistas iam humilhando o esforço, deixando-o pequenino e insignificante.
Quanto mais subia melhor eram. O Vall d’Aneu abria-se ante os meus olhos como qualquer coisa de divinal. O éden na terra!

Sempre em sentido ascendente acabei por passar pela povoação de Jou e uns quilómetros mais à frente lá estava, silenciosa e plácida, a povoação que me serviria de porto de abrigo para uma última noite nas montanhas. Na bonita povoação de Son, estava situada a casa Masover, onde haveria de pernoitar.


Subindo para Estais… Pistas de Espot bem marcadas ao fundo na montanha…

Belas paisagens do Vall d’Aneu…

Vistas sobre o lago com o Parque Natural L’ Alt Pirineu ao fundo…

Povoação de Son, onde dormiria na casa Masover…

Assim que cheguei e depois de esperar uns minutos até que aparecesse alguém, lá me foram mostrados os aposentos, as instalações, o normal. A simpatia e recepção foram semelhantes ao que de melhor já tinha presenciado. Um senhor forte e bonacheirão era o anfitrião.
Estranhei os Bascos ainda não terem chegado, mas deduzi que tivessem tomado a opção de uma das variantes da Ruta que passa pelo Bosque Negro de Son. 670 Metros de acumulado positivo a mais não era coisa que me apetecesse muito, embora depois do relato feito pelos intervenientes tenha ficado com alguns remorsos pela opção que tomei.
Disseram maravilhas do trilho! Enfim…
Aproveitei esse tempo para trocar as minhas mortas pastilhas traseiras depois de um banhinho cuidado na montada que bem precisava. O pó acumulado resultante da batalha era o culpado pelos barulhos incomodativos que soltavam os pivôs da escora ao receber os obstáculos do caminho. Depois do serviço concluído e cara lavada era outra!

Entretanto chegam os meus companheiros de jantar e de aventura!
Só aqui pudemos travar melhor e mais prazenteira conversação. Enquanto esperávamos pela feitura da janta fomo-nos perdendo em histórias de cá e de lá. Sempre em Castelhano que eu de Basco não percebo nada, proporcionando um final de tarde estupendo.

O jantar foi na mesma onda…
Bastantes coisas em comum entre estranhos deu o mote para uma conversa que se estendeu por horas atrás da mesa do jantar. O dono do estabelecimento connosco à mesa e muita simplicidade no trato, fez desta uma noite em tudo semelhante a uma noite “entre amigos”.
Tudo malta que vive no monte, para o monte e do monte!

Que posso eu dizer mais?!
Apenas que tive muita, mesmo muita pena que terminasse…


Gosom, Hiker e Yon! Os companheiros Bascos com o seu instrumento de “bebida”…

Ainda estivemos para ir a pé às festas que aconteciam em Esterri d’ Aneu, donde vinham os foguetes que ouvíamos estoirar no ar, mas acabámos por perceber que seria de loucos e confortavelmente nos fomos deixando embalar na cavaqueira, bebendo birra com lima por um “vaso basco” próprio para tal, cedendo lentamente ao cansaço e à vontade de deitar o esqueleto que aconteceu por volta das 02h30 (!) da madrugada.


O início da tirada de hoje foi às 8h em ponto e acabei por chegar ao final no exacto momento em que o relógio acusava as 16h30. Para completar os 54.5km demorei 8 horas, das quais 2h30 foram à sombra a descansar. Trepei um total de 1611 metros e acumulei um total de descidas na ordem dos 1485m.

Local de pernoita: Casa Masover
http://www.casamasover.net/principal.htm

[Continua…]